sexta-feira, 4 de maio de 2012

O Caso de Joãozinho

Pedra Mingua


Tinha ouvido uma palavra sem sentir muito sentido, e a coisa lhe curiosava de fazer tremer o umbigo! O caso é que um sujeito mesquinho informou preferir ser sozinho. Foi aí que lhe deu na telha de entender que raio era isso, virou compromisso da vida de Joãozinho Marquês, filho e neto de Dona Inês, que era mãe na hora do ensino e era vó na hora de dar mimo.  
O menino cresceu rodeado de tudo que varava o cercado do pedaço de chão comprado com vintém muito suado lá no século passado, quando amar ainda era estar do lado, numa cidade que não ficava nem pro sul nem pro norte, o sol era forte mas não nascia nem pra leste nem pra oeste, uns chamam de agreste outros dizem que é cerrado, e diante dessa confusão toda, a cidade nem batismo de papel tinha ainda, mas ficou conhecida como Pedra Mingua, um nome tão bonito que deixou o povo esquisito a ponto de todo mundo esquecer de perguntar o porquê.
Pra cima da terra tinha coisa que não acabava mais, aliás, Joãozinho achava assim, mas muito daquilo ali já teve fim. O vizinho era o Seu Cardoso, homem de rosto bondoso, nunca que tinha visto o mar e nem fantasma, mas inventava cada doidisse de deixar Dona Inês pasma com tanta clareza que descrevia, como quem anda manso e assovia mesmo quando o apito do trem grita como quem vê a mãe pela greta.
Pra chegar até a casa de Seu Cardoso a chinela gastava um bucado, passava por umas dez árvore alta, uns terreno cheio de falta, subia morro e descia ladeira, que era de molhar a cabelêra com aquele sol localizado bem no meio do teto, bem em cima da cabeça. Era longe. Mas, Joãozinho Marquês nunca que se desfez dessa mania de visitar Seu Cardoso todo santo dia. Na ida e na volta ele via o tanto de coisa boa e ruim que tava acompanhando aquela caminhada pelo trajeto que nem era estrada, era só vontade arretada de dar laço entre uma casa e outra, como quem embrulha pra presente. E era mesmo, porque embrulhar pra futuro era motivo de desconjuro, porque com futuro a gente nem perde tempo de gastar papel bonito. Futuro é bicho esquisito, não sabe se inventa ou imita, não sabe se vai ou se fica, não é motivo pra gastar fita.
Quando não tava nem indo nem voltando do vizinho, ficar brincando era o domingo de Joãozinho, fosse o dia que fosse. Ele morava num quintal que por um acaso tinha uma casa, que pra ele nem importava muito. Achava exagerado aquele troço cheio de lado que teimava em deixar separado do quintal seco esverdeado tudo quanto é gente que fala ou que late, mas se confortava: “Parede faz parte”. Parede só faz partir o que antes era juntado, é de deixar qualquer homem agoniado e é mal que nunca foi remediado. Hoje em dia tem piorado, tudo ficando mais asfaltado, vizinho ficando mais afastado, mesmo que more tão do lado que chega a esbarrar um no outro. Parece que o povo todo mudou pra gritaria e esqueceu que o bom dia tá ali do lado e ainda mora com o cafezinho passado na hora.
Mas, retomando o rumo da história, aconteceu que o fato de o sujeito mesquinho ter preferido ser sozinho acabou dando pano pra manga cumprida de tanto que a cuca do Joãozinho num tava entendida. Como é que o mesquinho hoje conseguia acreditar que tava sozinho a vagar num espaço onde falta até lugar pra enterrar gente deitada; um lugar que tem rua que passa até por baixo d´água se bobiar, só pra o povo não se atrasar e muito menos ter que frear e menos ainda ter que andar? Como é que o mesquinho arrumava jeito de guardar no peito a tranquilidade de ser só nesse mundo cheio de cidade? Joãozinho achou bonito e sereno, e passou a querer ser ameno ao menos uma vez na vida pra poder dizer que também prefere ser sozinho.
Aconteceu que bem antes de tentar ser só, o laço do presente tratou de virar nó e ele arrumou foi problema maior porque, se fosse assim, ele mais o mesquinho iam ser então sozinhos juntos, e isso embaraça até dicionário careca. Joãozinho percebeu uma aperriação da tão sonhada condição de não se esbarrar em mais nada: não cabia mais de um nessa palavra. Sozinho não tem plural.
Mas a vontade de ser só era tanta, que Joãozinho cochichou uma reza pra sua santa e  passou a mão numa espingarda velha, que sempre viveu guardada, quando concluiu que só existia espaço pra um sozinho, e resolveu disparar na cabeça do mesquinho logo cinco estouros pra garantir que ia morrer pra sempre.
O barulho do primeiro disparo foi a última coisa que Joãozinho escutou. Ele nunca foi  bom de tiro nem de caça, e acabou restando só a carçaca, pois o fato é que ele tinha mirado na mesma casa em que ele próprio morava.
Foi esse o dia em que morreu Joãozinho Mesquinho, como era conhecido pelo povo de Pedra Mingua. Ele e a cidade tinham muita coisa parecida, e Joãozinho também nunca conseguiu batismo direito, e acabou sendo o tipo do sujeito com um grande nome de gente pequena, sendo ão ao mesmo tempo que era inho. E não se sabe como Joãozinho ganhou a companhia da mesquinharia, mas como o tiro foi do lado direito ele acabou morrendo primeiro que o Mesquinho que também morava ali, só que do lado esquerdo. E nem na hora de morrer Joãozinho teve o prazer de conseguir e merecer ser solitário. Joãozinho, coitado, foi otário. Nem sempre o direito é correto. Devia ter atirado do lado certo, mas seu apelido nunca foi João Esperto.


Deia Pereira